Comunicação de Andreia Joana Silva, a
propósito do lançamento dos livros "O Miserável e Três
Contos Filosóficos" e "Qualquer idiota morre depois" [edição
bilíngue Português/Espanhol], do escritor César dos Anjos.
Sobre o texto O Miserável
Este
texto não é aconselhado a leitores sensíveis. Contudo é um texto que eu
aconselho a leitores sensíveis. Trata-se de um texto perturbador, é certo. Mas
que cumpre a sua função artística: a de incomodar o leitor, a de perturbar, de
tocar com o dedo no âmago da ferida, nas entranhas, alcançando algo que é quase
inumano, ou talvez seja tão humano que tenhamos medo de admitir que o é.
O
conto O Miserável ficou no top 5 do I Prêmio Internacional de Literatura
Cartonera, lançado por Cephisa Cartonera. Foi um texto que me custou a ler,
devo admitir. Mas ainda assim é um texto que faz bem ler. No sentido em que
obriga a questionarmo-nos, a colocarmo-nos certas questões que por vezes não
ousamos colocar. Cumpre a sua função artística no sentido que incomoda o leitor
e impele-o a reagir. Abana-o, sacode-o.
Em
O Miserável estamos perante um texto
cuja essência é primordialmente demoníaca. Deparamo-nos com um personagem que
nos transporta até ao seu mundo, o qual é um autêntico locus horrendus. Neste
locus horrendus no qual nós, leitores, somos gentilmente convidados a entrar,
acompanhamos o personagem e vivemos com ele o exteriorizar dos seus demónios
através de estupros, violência gratuita, assassinatos, crimes hediondos.
Assistimos à procura do personagem pela libertação, a sua catarse. A qual não
chega, qual animal insaciável que continua à procura de satisfação e prazer
incessantemente.
Nietzsche
dizia que “o imitar é congênito no homem e ele compraz-se no imitado”. Ou seja, enquanto seres humanos, retiramos prazer na imitação da
realidade, pois é inerente à nossa natureza. Imitamos como forma de
aprendizagem, como forma de brincadeira e em tom jocoso, imitamos para tornarmos
a realidade alheia mais próxima de nós. Sendo a literatura o espelho da
realidade, teremos também nós prazer em ver essa realidade imitada? Ou esse
prazer caberá só ao escritor, que a imita, (des)escrevendo-a?
Sobre o trabalho das editoras cartoneras
É
com grande satisfação que acolhemos Querubim Cartonera na grande família
cartonera, numerosa e instalada nos quatro cantos do mundo. Já muito se tem
escrito sobre a importância das pequenas editoras, mas tudo se resume a uma
alternativa: uma alternativa à publicação convencional. Nós, cartoneros, queremos
voar mais alto. Queremos ser mais do que uma alternativa. Queremos ser uma
família. Queremos fazer livros como quem faz bolos para oferecer aos amigos e
familiares, queremos que os livros sejam uma desculpa para estarmos juntos,
para trabalharmos em coletividade, para descobrirmos o companheirismo e a amizade
em torno dos livros. Claro que falamos de um projeto multidimensional e com
imensas potencialidades (certamente a maior parte delas ainda não estão
exploradas).
As
editoras cartoneras nasceram com o objetivo de publicar autores não conhecidos,
fazer livros com um baixo custo de produção os quais se pudessem vender também
a um baixo preço. Isto significa que a nível literário abriu-nos as portas a um
mundo ainda inacessível e deu-nos à boca literatura de rua, na qual há o apelo
ao grotesco, ao feio, ao mundano, ao proibido (não deixem de ler as primeiras
obras publicadas de Eloísa Cartonera). O cânone ficou de lado e novas janelas
literárias abriram-se para nos darem a conhecer novos autores que de outra
forma nunca seriam conhecidos.
Por
outro lado, podemos também dissertar sobre o lado artístico que as editoras
cartoneras veiculam: não nos cansamos de repetir que não há dois livros iguais.
É o nosso estandarte. Cada livro é feito com amor, carinho e dedicação q.b.
Sendo inteiramente feitos à mão, são irreproduzíveis. São únicos. Já sabemos
que para nós, ávidos leitores, cada livro é único, mas estes são mesmo únicos
pois não existem dois livros iguais. Estamos portanto perante o livro-objeto, o
livro enquanto obra de arte plástica.
Socialmente
temos também uma grande responsabilidade: valorizar a figura do catador de
lixo. É a ele que vamos comprar o papelão mais caro, tentando contornar o
sistema, mostrando-lhe que o seu trabalho merece ser mais bem pago. Ajudando-o
a viver melhor nesta sociedade madrasta. Sensibilizando a população. Olhando-o
nos olhos.
Hoje,
neste momento, assistimos à continuação do movimento cartonero. Assistimos ao
nascimento de mais uma irmã cartonera. É em momentos como estes que sentimos
todo o nosso trabalho recompensado: quando conseguimos transmitir aos outros
esta nossa garra de perpetuar algo que é maior do que todos nós, algo que mesmo
nós, ainda não conseguimos compreender. Hoje, neste momento, mesmo longe,
estamos aí com vocês. Estamos no meio de amigos. Revemos as caras conhecidas.
Distribuímos beijos e abraços. Felicitamos a Querubim Cartonera e, com um forte
acento hispânico, dizemos Avanti cartoneros!